28.2.06

‘Joe nos ensinou que Deus é um chapa’

‘Joe nos ensinou que Deus é um chapa’

Fernando Duarte
Correspondente LONDRES


Durante quase 40 anos, Tony Hendra foi puramente associado à sátira e a iconoclastia inclementes, fosse nos palcos junto aos colegas de Universidade de Cambridge (entre eles John Cleese e Graham Chapman, que anos depois fariam parte do Monty Python) ou como fundador da “National Lampoon”, a seminal revista humorística americana. Até que, em 2004, o ator e humorista inglês lançou um livro em que nem mesmo confissões como a de duas tentativas de suicídio se mostraram tão surpreendentes como os relatos de uma inimaginável amizade com um monge beneditino de uma abadia da bucólica Ilha de Wight, no Reino Unido. Em “Frei Joe”, que chega ao Brasil pela Objetiva, Hendra não apenas relembra os diálogos com o monge que conheceu aos 14 anos, depois de flagrado numa mistura de iniciação sexual e adultério com uma vizinha mais velha. Ele também faz uma emocionante reflexão sobre a fé e os dilemas do catolicismo, que toma boa parte da entrevista concedida ao GLOBO, por telefone, de Nova York.

Por que publicar a história de sua amizade com Frei Joe?

TONY HENDRA: Já tinha conversado com Joe a respeito do livro um pouco antes de ele ficar doente de novo (Joe morreu em 1999, de um câncer reincidente). Seria uma espécie de trabalho a quatro mãos. Depois de Joe partir, porém, acho que meus motivos foram mais egoístas do que qualquer outra coisa. Percebi que ele tinha sido mais determinante em minha vida do que jamais tinha notado. Pensava que Joe jamais iria embora, e o vazio deixado por ele me inspirou a escrever o livro, minha tentativa infantil de ressurreição.

“Frei Joe” foi publicado numa época em que choviam denúncias e críticas contra a Igreja Católica, em especial sobre o comportamento nada santo de seus sacerdotes. O senhor temeu pelo tipo de recepção que o livro poderia ter?

HENDRA: Confesso que tive um pouco de medo, mas, quando comecei a receber e-mails de pessoas que nem se diziam católicas, descobri que o livro foi uma espécie de boa notícia para o catolicismo. O mais importante, no entanto, foi mostrar que Joe era muito mais autêntico do que muitos líderes cristãos que bombardeiam os americanos com imposições sobre a fé. Joe não queria evangelizar o mundo, mas cuidar dos temores e dos desafios da vida cotidiana. No fim das contas, acho que o livro fala muito numa variação da parábola do filho pródigo, que tem apelo mesmo para quem não é cristão.

O senhor faz críticas ao Concílio Vaticano II e às modificações provocadas na liturgia católica. Mas não concorda que tais mudanças propiciaram justamente um contato mais informal entre sacerdotes e fiéis?

HENDRA: Frei Joe já atuava dessa maneira muito antes do Concílio, sem hierarquizar as relações com os fiéis e defendendo uma democratização da Igreja. Sem falar que ele não bancava o santo — gostava de vinho e louras, por sinal! Admito que o Vaticano acertou ao estimular o acesso dos fiéis às congregações não somente por motivos religiosos, mas ao mesmo tempo discordo da maneira como tratou os aspectos litúrgicos. Trocar o canto gregoriano por guitarras na missa, por exemplo, em nada fez para trazer mais fiéis e foi muito mais um comprometimento da identidade católica do que um benefício. E não penso que a Igreja tenha se democratizado desde então.

O senhor consegue imaginar Frei Joe vivendo nos dias de hoje?

HENDRA: Sim, pois muita gente já teve um guia como ele em sua vida e, como conto no livro, o próprio Joe ( de acordo com Hendra, Lady Di foi uma das muitas pessoas aconselhadas pelo monge ). Mas é inegável que Joe foi único. Bastou constatar que, depois de sua morte, a casa de hóspedes da Abadia de Wight estava sempre com vagas, o que antes não acontecia. Joe tinha o dom de saber escutar e, mesmo sem ter sido canonizado, foi um santo para mim e muitos outros.

Quão surpreendente foi o sucesso do livro?

HENDRA: A primeira edição teve apenas 12 mil cópias, mas meses depois estávamos em primeiro lugar na lista de best-sellers do “New York Times”. Já me propuseram fazer um filme sobre Joe, mas só vai acontecer se eu tiver controle do projeto. Conheço Hollywood o suficiente para saber que, se vender os direitos, acabarei vendo Anthony Hopkins ou Al Pacino no papel do frei (risos).

No livro há vários exemplos de como Frei Joe aconselhou o senhor. Alguma dica para leitores que passem ou tenham passado pelas mesmas aflições?

HENDRA: Se meu livro impedir que alguém se jogue na frente de um trem, como tive vontade de fazer em alguns dos meus momentos de maior desespero, ficarei extremamente grato. Mas quem sou eu para dar conselhos? Apenas espero que as lições de Joe incentivem as pessoas a ter menos medo de Deus e da religião. Joe nos ensinou que Deus é um chapa.

Quanta falta Joe faz?

HENDRA: Sempre fará falta, mas ao menos me sinto privilegiado por ter encontrado em Joe a maior representação possível de Cristo. Ele foi a fé tangível.

Fonte: http://oglobo.globo.com/jornal/Suplementos/ProsaeVerso/191965782.asp

18.2.06

Ratzinger ou Bento?

Quem era Joseph Ratzinger, realmente? E quem é Bento XVI? Os dois são o mesmo homem? Ou alguma coisa mudou?

Dr. Robert Moynihan,

Inside Vatican
O Ano Passado e Este Ano
[Editorial de janeiro de 2006 de Inside the Vatican, pelo Dr. Robert Moynihan]


Nesta edição de Inside the Vatican, a foto da capa é do nosso "Homem do Ano", o Papa Bento XVI, caminhando em suas vestes papais brancas, acenando. Ele parece bastante feliz, alegre, sereno. Essa é talvez a coisa mais notável até o momento acerca de seu pontificado: que tem sido silencioso, sereno, até mesmo, poderia-se dizer, feliz.
Quem teria esperado isso? A "imagem" que o mundo tinha de Joseph Ratzinger o "Grande Inquisidor", a intransigente cabeça do antigo "Santo Ofício da Inquisição", foi totalmente despedaçada pela realidade de Bento. E assim nos deparamos com a questão da imagem e a substância, da aparência e a realidade.
Quem era Joseph Ratzinger, realmente? E quem é Bento XVI? Os dois são o mesmo homem? Ou alguma coisa mudou?
Uma coisa é clara: é na transição de "Joseph Ratzinger" para "Bento XVI" que a história desse pontificado será escrita. Todo Papa é dois homens. Isso é assim porque todo Papa tem dois nomes. Esse Papa foi Joseph Ratzinger (assim como os anteriores foram Karol Wojtyla, ou Eugenio Pacelli). Agora ele é Bento XVI (e Wojtyla foi João Paulo II, e Pacelli foi Pio XII). Como homens, eles têm o nome que seus pais lhes deram, o nome que eles carregaram quando crianças, seu nome de batismo; como sucessores de Pedro, eles têm um novo nome, o nome escolhido no momento da eleição para o trono papal.
O que isso significa? Significa que há uma tensão dentro de cada pessoa que assume o trono de Pedro, uma tensão na encruzilhada de sua realidade mais íntima: seu nome. Todo Papa era um homem; agora é outro.
Como Joseph Ratzinger, esse Papa teve uma identidade muito particular. Ele era um alemão, da Bavária, filho de um policial antinazista, que cresceu sob o totalitário regime nazista, na Igreja pré-conciliar. Ele foi um teólogo que estudou Agostinho e Boaventura, que trabalhou no Concílio Vaticano II na força e paixão de sua juventude, que se tornou professor, depois bispo, depois cardeal e, de fato, foi provavelmente o mais influente de todos os cardeais na Igreja por quase um quarto de século.
E então, em 19 de abril de 2005, poucos dias antes de seu 78.º aniversário, ele mudou de nome. Ele não era mais Joseph; ele era Bento. E o 16.º numa longa linhagem de Bentos.
Tem havido um silêncio notável em Roma nos últimos nove meses. O círculo íntimo do novo Papa é bastante pequeno e coeso. Não houve "vazamentos" neste pontificado .
Então, o que está se passando? Bento está "vestindo" seu novo nome. Ele tem estado se adaptando à mudança dramática que ocorreu com sua identidade em 19 de abril. (Um modo como ele tem feito isso é rezando o rosário diariamente com seu secretário particular.) Ele não é mais Joseph Ratzinger, mas Bento. Ele está se tornando Bento para si mesmo, e se tornará Bento perante nossos olhos durante 2006 e depois. Todos nós logo veremos quem Bento realmente é.
Quais são os problemas que Bento enfrenta? São muitos, mas ainda assim, em última instância, redutíveis a um só: a fé. Ensinar a fé. Testemunhar a fé. Crer em Cristo, pregar essa crença, viver essa crença. Todos sabemos as conseqüências da perda da fé: egoísmo, pecado, crueldade, opressão, sofrimento, divisão, choro, raiva, morte. E assim, para qualquer um que ame a Deus e ao próximo, a cura para as dores deste mundo é evidente: a fé. Os resultados da fé são igualmente claros: generosidade, sacrifício de si, afabilidade, misericórdia, paz, unidade, serenidade, risada saudável, amor, vida.
O "plano" geral do pontificado de Bento não pode ser outra coisa senão isso -- assim como é o plano geral de todos os Papas: preservar a fé. Defender a fé. Confirmar os outros na fé.
Os muitos problemas na Igreja, e no mundo, que nos preocupam a todos -- problemas econômicos, dívidas, pobreza; problemas políticos, tensões internacionais, guerras e rumores de guerras; problemas particulares, doença, tristeza, solidão; problemas eclesiais, a ruptura de votos, a difusão de pecados -- todos esses problemas só podem ser enfrentados a partir do fundamento da fé entregue a nós desde o início.
Nesta edição, escolhemos Bento como nosso "Homem do Ano" porque é ele que todos os Católicos agora esperam que ensine a fé, pregue a fé, defenda a fé, isto é, seja o Vigário de Cristo na terra.
E nós escolhemos outros nove homens e mulheres para completar nossas "Dez Pessoas Principais de 2005", pessoas que, cada qual a seu modo, estão dando testemunho, não de modo perfeito mas de modo verdadeiro, daquela fé que é a esperança do mundo e da humanidade.
A fé está fraca? Sim. Mas na fraqueza há humildade, e na humildade há o germe da força.
Há guerras pelo mundo? Sim. Mas também há pacificadores, e por meio da fé e da perseverância na fé, aqueles que trabalham pela paz não cessarão seus esforços.
Pecados sexuais são cometidos? Sim. Mas há também aqueles que lutam pela pureza, que buscam a castidade, e estes prestam um testemunho poderoso a este mundo degradado.
A Igreja descarrilhou-se? Humanamente falando, estamos em dificuldades . Muitas igrejas paroquiais estão fechando, há muitos padres em pecado, muitos cristãos tíbios, muitas crianças sem receber outra educação que a dos jogos de computador mundanos, muitos idosos aos quais não se proporciona dignidade, e alguns dos fiéis mais apaixonados parecem arrogantes, intolerantes, sem caridade. De modo que a Igreja parece, de fato, estar passando por uma "noite escura" coletiva.
Nessa "noite escura" chegou o Papa Bento. Caberá a ele fazer brilhar a luz da fé na atual escuridão.
- Dr. Robert Moynihan

Autor: Marcus Moreira Lassance Pimenta
Fonte:
Tradução: www.montfort.org.br